domingo, 4 de março de 2012

A ruivinha de Clarice Lispector.

E foi assim…

Cheguei na sala de número um, meio desconfortável, boca um tanto seca. Sentimentos comuns sempre que nos submetemos a algum exame. Pelo menos, comigo é deste jeito.

Na hora permitida, ainda ressabiada, abri o caderno de provas e dei de cara com ela: a ruivinha de Clarice Lispector. Um sorriso brotou em  mim! Me senti em casa. Agora sim, poderia começar.

Que bela coincidência! Na prova de Português, o único texto a ser explorado era dela, da minha autora favorita dos tempos atuais!

Quem acompanha este blog sabe que são inúmeras as citações de Clarice espalhadas pelos posts! Sorte a minha encontrá-la, logo na abertura, da prova do Concurso. Posso até não tê-la interpretado conforme desejam meus avaliadores, afinal, interpretação é algo muito subjetivo! Mas a simples presença deste texto, devolveu-me a confiança necessária para a realização de todas as outras questões.

Foi fundamental.

E para quem ainda não o conhece, reproduzo para vocês!

Quem sabe um dia ele torne a cair na prova de algum outro concurso… Ou, pelo menos, promovo a oportunidade para que se conheça um belo texto de uma autora muito especial. Aproveitem!

 

A Menina Ruiva e o Cão Ruivo 
Clarice Lispector

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.

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Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam. Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

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A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina. Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.

Um comentário:

  1. juarez de mello rosa6 de março de 2012 às 00:13

    Muito boa escolha, esta tb é minha escritora preferida, ela me remete a infancia bem vivida que tive.

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