sexta-feira, 19 de abril de 2013

História de índio de verdade.

Com a palavra, o índio.

Índio que pensa, que conserva as tradições, que cuida da natureza, que aprende com os mais velhos, que planeja a vida…

indios

O Indígena

(Silvio Meincke)

“Meu avô morreu com 115 anos de idade quando eu era um menino de doze anos. Aprendi muitas coisas boas com ele. Dizia que os brancos estavam ferindo a terra e que isso não era bom; que eles derrubavam as matas, expulsavam os animais, limpavam seus roçados com fogo e sujavam as águas; que estavam ofendendo a terra.

Quando meu avô partiu, minha mãe me lembrava das suas palavras. Ela pedia que eu estudasse bem a nossa cultura para defender a terra e a natureza. Somente assim o nosso povo poderia sobreviver.

– Defende teu espaço – ensinava minha mãe – fica ao lado do teu povo e preserva  sua cultura.

Estou seguindo estes conselhos e me empenhei para reaver essa área de Rio dos Índios. Enquanto não temos licença para morar dentro da área, ajudo meu grupo a sobreviver nesse pequeno pedaço provisório que mede menos de dois hectares.

Já estamos planejando como iremos tratar a terra quando tomarmos posse dela. A maior parte da área está desmatada, e restam poucas árvores. Foi jogado muito agrotóxico. Ervas nativas de grande valor foram destruídas, e fontes e córregos estão envenenados.

Iremos dar força à terra com adubo verde e esperar que ela se limpe dos venenos. Vamos replantar árvores de todas as espécies nativas e esperar que a mata volte com toda sua fartura.

– Terra boa para nós indígenas é terra com mata – dizia minha mãe. Por isso, iremos usar apenas uma parte da terra para plantar nossos alimentos. Já temos uma horta com aipim, batata-doce, milho, verduras e árvores frutíferas. Também queremos criar peixes e pequenos animais, mas vamos plantar e criar animais somente para consumo próprio, pois importa preservar a mata.

A mata nos dá quase tudo que necessitamos para viver. Nosso povo fica saudável quando vive na mata e pode colher os frutos da sua fartura. Aqui, ela foi destruída e, junto com ela, sumiu o pinhão, que foi um alimento importante dos nossos antepassados. Desapareceram todos os animais de porte grande e muitos pequenos. Sobraram poucos pássaros, e, por fim, os venenos mataram muitas plantas úteis, que nos serviam de alimento e remédio, mas que os brancos chamam de ervas daninhas, erva-má ou inço.

– Para nós – ensinava meu avô –, quanto mais plantas cobrem a terra, tanto mais bonita é nossa vida.

O Rio Uruguai tinha muito peixe. Era um rio vivo! Tinha surubim, pintadão, dourado,
bocudo, trairão e tantos outros. Quando as matas foram cortadas até a beiradinha, as águas diminuíram. Quando as lavouras foram lavradas intensivamente, as enxurradas trouxeram a terra solta que fechou as tocas dos peixes. Quando os venenos foram jogados nas lavouras, eles mataram o alimento nos rios. Os agrotóxicos mataram muitas formas de vida.

Nós iremos recuperar a nossa área. É um plano para longo prazo, porque a natureza precisa de tempo para curar as feridas. Precisamos ter paciência. Nossa mãe terra foi ferida. Vamos dar tempo a ela e tratá-la bem, para que sarem os ferimentos, e ela volte a cuidar de nós.

Nossa horta já se recuperou do envenenamento. Teve tempo de limpar-se. Nós não jogamos veneno nela. Por isso, ela nos dá alimento bom. Dá-nos verduras, aipim, batata-doce, inhame, alimentos que nosso grupo precisa. Temos verduras durante todo ano. Às vezes, sobra. Então, levamos as sobras para escolas e creches na cidade. Nossa mãe terra é generosa e queremos ser generosos também. Ela produz para todos os seus filhos, para os índios e para os brancos. É como todas as mães que dão seu leite aos filhos que criam.

– A terra não cobra nada pelos alimentos que nos dá – ensinava meu avô –, mas ela
quer que a tratemos com respeito.

Os brancos da cidade aceitam bem os alimentos que sobram da nossa horta, porque temos amizade com eles. Existe confiança e diálogo entre nós. Também conversamos com políticos de Vicente Dutra. Eles nos conhecem.

Sobrevivemos nesse hectare e meio, porque temos muita união. Além da horta, temos o nosso artesanato, que vendemos para comprar coisas que nos faltam. A natureza é a fonte também do nosso artesanato. Ela nos dá tudo. Por isso, quando tivermos acesso à nossa terra, iremos cuidar dela com muito carinho e tratá-la bem. Queremos que ela nos dê muitas árvores e muitas espécies de plantas, grandes e pequenas, com aves, animais, borboletas e abelhas.

Iremos deixar os pássaros viver livremente, porque eles vão trazer as sementes das ervas que foram eliminadas pelos venenos. Quanto mais ervas misturadas e quanto mais pássaros, tanto mais vida a terra tem.

Agora, faz pouco tempo, começaram a construir uma barragem aqui perto. Ela é muito importante para nossos amigos brancos. Para nós, ela não interessa. Ela vai represar o grande rio e mudar o jeito dele. Não sei se isso vai ser bom. Se fosse por mim, a barragem não seria construída, mas o nosso povo não foi perguntado.

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(Extraído do livro Quem vai alimentar o mundo. Histórias de pessoas que produzem alimentos, p. 66-70. Editora Oikos, 2011. Pedidos para silviolivros@gmail.com. In: http://www.comin.org.br/news/publicacoes/1308144533.pdf)

O Dia do Índio é apropriado para discutir a questão indianista e não para comemorar! Há muito o que ser feito nesse Brasil da diversidade.

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